Apesar do que se afirmou atrás, o interesse que uma improvisação “pura” em arte na transição do séc. XX para o séc. XXI pode suscitar, difere indubitavelmente daquele que um público novecentista nutria pela expressão das emoções específicas de um determinado artista num preciso momento da sua vida. Embora a arte improvisada de que falamos resulte também de acções específicas do artista, bem localizadas no tempo e no espaço, o seu carácter nada tem a ver com o captar de atmosferas fugidias, como no impressionismo, ou com o arrebatamento sentimental, no romantismo. É arte que não é a representação de aspectos do mundo real, porque não procura traduzir artisticamente qualquer realidade preexistente; é antes torrente de energia que constrói ou transforma a realidade, ou seja, é o conjunto de acções que determinado artista, ou grupo de artistas, inventou em tempo real, que invadem nesse tempo ou num tempo posterior de dimensão intuída o nosso corpo e mente, alterando-os, originando pensamentos flutuantes, estados de espírito, esgares, transe, etc., factos que nos aproximam de uma espécie de primitivismo (primitivismo nos meios e não no estilo). Não se trata de uma arte que represente uma realidade espiritual, de objectos ou espaços, por semelhança ou dissemelhança, não é figurativa e, contudo, também não é abstracta. Na abstracção o que guia o artista é ainda a presença do símbolo, da narrativa e da psicologia aplicada às artes, seja no campo da cor, da composição ou de acordes específicos que os seres humanos associam a emoções específicas. Esta arte improvisada “pura” é uma arte “real”, teoricamente próxima da “estética real” a que se refere Robert Ryman no texto “Sobre a Pintura”, embora ao manifestar-se como objecto que é tão-somente ele-mesmo o faça longe dos paradigmas da “arte concreta” e dos minimalismos maneiristas e esquemas, a nosso ver, rígidos, viciados e há muito esgotados da chamada “arte conceptual”. É objecto cuja matéria que o constitui possui em si visíveis as marcas da “luta” que travou para existir. Este é o seu drama. A opção do artista pela improvisação “pura” advém seguramente de uma perene crise de identidade que, na sucessão cronológica das actualidades, parece ser um problema que no tempo presente é sempre mais acentuado do que anteriormente. Ao entregar-se ao improviso o artista parece extrair de si a sua idiossincrasia transformada em obra de arte. Contudo, não é lícito afirmar que a obra de arte resultante é uma representação da idiossincrasia do seu autor. Essa obra de arte é apenas uma associação de matéria que existe e tomou forma.
terça-feira, 17 de janeiro de 2006
Arte e Improvisação – Uma questão de identidade (2.ª Parte)
por nuno de matos duarte
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Arte,
Ensaio,
Improvisação
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